quarta-feira, 7 de abril de 2010

Os inquilinos e essa estranha “espiadinha”

Assistimos ao julgamento de Alexandre Nardoni e Ana Carolina Jatobá, ou se preferirmos do casal Nardoni, pai e madrasta da menina Isabela, penalizados com 31 e 26 anos de reclusão respectivamente. Nada menos do que o esperado pela sociedade brasileira. Em sua coluna, Arnaldo Jabor, ao comentar o julgamento disse que "a psicopatia é um sintoma do século que começa". Diria mais: a sociedade hipermoderna, para utilizar o termo cunhado por Lipovetsky, mantém as suas relações sustentadas por um gozo perverso.

Serge Daney , importante crítico cinematográfico, disse que o cinema moderno testemunha e registra os acontecimentos presentes que ainda não são visíveis ao homem em seu tempo. O cinema antecipa através das imagens postas em movimento aquilo que ainda não podemos ver.

É assim que nesse mesmo período também podemos assistir ao filme Os inquilinos, do diretor Sérgio Bianchi, no qual um grupo de jovens arruaceiros aluga uma casa ao lado de Valter, um trabalhador que reside no local com sua família e leva uma vida pacata. Os transtornos se apresentam diariamente e tomam conta da rotina da família e do bairro, até que um crime é cometido pelos jovens e comove toda a comunidade. A comoção é coisa muito séria. Ela se dá diante do horror.

Durante o julgamento do casal podíamos ouvir na rádio, com muitos detalhes, a descrição criteriosa de cenas de sensibilização engendradas através dos depoimentos, tanto pelo sofrimento quanto pela frieza de seus protagonistas. Detalhes e mais detalhes que atraem e mantém muitos ligados às tv's, rádios, jornais, revistas. Todos espectadores de uma cena!

Em seu longa, Sérgio Bianchi toca nessa questão ao promover sequências nas quais, após o crime, vários moradores se aglomeram na porta da casa e mesmo invadem a residência de Valter em busca de detalhes ou do famoso slogan "dar uma espiadinha" na busca de mais detalhes e considerações acerca do ato criminoso. O que teria acontecido? Quais as causas? Como o mesmo foi executado? etc. Detalhes que Valter se cansa de ouvir.

É certo que cada qual terá um destino, quer na vida que se diz real quer na ficção cinematográfica; alguns serão presos, outros gozarão ao lado da lei. Entretanto, de uma forma ou de outra, são crimes que apaixonam o público causando as mais diversas reações e encontrando aí um lugar de destaque. Se são criminosos e agem contra os limites impostos pela convivência em sociedade, ao mesmo tempo encontram nela o seu público. A notícia torna-se mercadoria, os criminosos protagonistas de um espetáculo e o público o objeto alvo da indústria do entretenimento.

Lacan destacou que Marx inventou o sintoma quando viu nas deformações sociais não apenas o índice de que algo não ia bem, mas de que esse a mais em seu funcionamento podia revelar – tal como o sintoma freudiano – a verdade por trás dessas manifestações. Com isso, se "a psicopatia é um sintoma do nosso século", que verdade se ocultaria por trás desse a mais?

O cinema nos mostra que a relação do espectador com a tela é permeada pelo enquadramento de uma cena que diz respeito à fantasia inconsciente. Portanto, à forma como o sujeito respondeu a pergunta acerca do desejo do Outro, que ordena a sua relação particular com o mundo. Ao construir um filme, o cineasta não está fora do discurso de seu tempo, o faz a partir de um campo discursivo vigente entre seus contemporâneos e mobiliza, como sabemos, a fantasia do espectador. Vemos assim, no filme de Bianchi a exposição da violência tornada notícia entre os moradores de um pequeno bairro. No julgamento do casal ela se transforma em mercadoria e ainda horroriza, ao contrário do que acontece com as mortes de todos os dias por balas perdidas e assaltos, que vendem muitas notícias. Se algumas ainda são capazes de horrorizar a sociedade é justamente porque dizem respeito a esse "a mais" que a cena de horror, ao vincular-se à fantasia, engendra num máximo de gozo.

Abraços Partidos

"Todo filme precisa ser terminado, ainda que não possa ser visto."


 

    Com essa frase de Mateo Blanco – diretor de um filme que se desenrola dentro do filme – chega ao fim Abraços Partidos, cujo tema central é o cinema narrado através das lentes de Pedro Almodóvar. O cinema, enquanto criação ficcional, é uma cena que se dá a ver no enquadre que tela delimita e no qual são projetadas as fantasias inconscientes daquele que constrói um filme. Escolher os planos, executar a montagem de uma sequência, é algo que se dá através da tessitura de um texto que oferece moldura a uma tela na qual o espectador é capturado nos fios de luz que orquestram o desenrolar de uma cena nunca antes vista, mas sempre repetida.

Em Abraços Partidos, Almodóvar nos leva a percorrer o universo do cinema através de um "olhar cego" representado pela personagem Henrry Cane, um cineasta que após sofrer um acidente de automóvel que lhe tira a visão empreende a montagem do filme que havia dirigido. Trata-se de uma montagem que fará somente através do som da voz dos atores. É a sua escuta das modulações da voz produzidas durante a interpretação que define a sequência que utilizará. O "fora do tom" lhe revela as nuances e tonalidades de uma sequência que o ator, repetiu repetiu repetiu... lhe permitindo assim, através dos cortes, engendrar um outro sentido à cena antes imposta por Ernesto, produtor do filme.

Se Abraços Partidos traz à cena o cinema e termina com um filme que, tendo recebido o sentido do outro, precisa ser remontado, ainda que não possa ser visto, Volver, se encerra com fantasmas que nunca morrem, nas palavras proferidas por Irene, avó de Raimunda (Penélope Cruz). Os fantasmas nunca morrem, pois são eles que estruturam e suportam a realidade de uma outra cena, esta inconsciente. É a cena sobre a cena sheakspeareana tão empregada por Almodóvar em seus filmes e retratada de forma muito específica em Abraços Partidos, onde encontramos Ernesto Filho fornecendo incessantemente ao pai imagens acerca do dia-a-dia de Lena (Penélope Cruz) – mulher de seu pai e protagonista do filme por ele produzido – nos settings, culminando com seu envolvimento amoroso com o diretor Mateo Blanco. São imagens que vão compor um filme dentro do filme, ao qual Ernesto assiste, gozozamente, com o auxílio de uma intérprete em leitura labial, posto que o mesmo não contém som. Interpretação cujo desfecho ouvimos através da voz da própria Lena quando, ao adentrar a sala de projeção, surpreendentemente dá voz à personagem de uma outra cena. Lena invade a cena da qual se fará personagem inserindo nela a sua voz, dando corpo à personagem e revelando a outra cena. Experiência cinematográfica que pode ser encontrada no trabalho de Eduardo Coutinho em Jogo de Cena, no qual atrizes e não atrizes contam suas histórias levando o espectador à indistinção entre a cena teatral e a realidade daquele que narra a sua cena.

    É assim que Mateo inclui na tela cinematográfica a queda de Lena ao ser empurrada por Ernesto do alto de uma escada, quando a mesma está deixando a casa. Tal Jogo de Cena, traço de Almodóvar, faz com que fatos e ficção se misturem na narrativa cinematográfica conduzindo o espectador através de uma sequência de planos que oferece enquadre à cena. Se a cena possui jogo é, como nos mostra Eduardo Coutinho, um jogo significante que faz com que o visível seja reduzido a uma montagem significante que se dá a ler àquele que pode ouvi-la ainda que não possa vê-la. Ao fazer o filme, Mateo Blanco, encena o texto de uma história que só será ouvida por Henrry Cane ao montá-lo.